domingo, 3 de fevereiro de 2013

Passeios ao léu (diário de campo surrealista).

As cabeças recostadas na parede. Um ao lado do outro. Sem divisórias, as cabeças na gamela, desfazendo-se como bichos, liquefeitos, não é como no aeroporto internacional do Ceará, onde ninguém pode olhar para o pau do outro nem que queira pois é tudo bem dividido, um pau para cada divisória, os mecanismos ocultos do desejo superados, diferente do boteco que dominado pela vitrola nas alturas convidava a moçada para voltar ao salão onde as meninas esperavam. As caixas de som eram meio estouradas, certamente, mas no banheiro reinava a paz de Deus, não havia discórdia, cada repartição tinha sua representação, o mármore, a cruz e o infinito, nem mesmo no balcão de bebidas as coisas funcionavam assim tremendamente fora da ordem. O banheiro, ao lado da mesa de sinuca, não tinha desse tipo de prerrogativa, de privilégio, que costuma separar a vida dos senhores da dos servos, o banheiro era uma metafísica da ordem social, os bairros nobres separados dos bairros pobres, cada qual no seu cada qual, e, nem por isso, os homens perdiam a concentração no ato de urinar, mãos ao alto, pensativos, amortecidos pelas bebidas fortes, embriagados de chá mate. A cabine, reservada para outras necessidades, estava devidamente trancafiada, cadeado e corrente bem passados, e apenas sob demanda solícita ao dono barbudo se poderia acessá-la, um senhor desconfiado, olhar esperto, tentando adivinhar a posição de cada cabra que circulava no entorno do balcão, girando em vários graus sobre as lentes da armação os olhinhos especialistas, enquanto tomava café com leite, feito na hora, despreocupadamente, calmamente, e, em cima dele, escondida nos caibros do telhado, embainhada, uma peixeira enorme, quase uma espada, amolada só de ver por fora. Era uma maneira de delimitar quem era de dentro e quem era de fora, a peixeira no Ceará é um sistema cosmológico de delimitação do real, tanto do ponto de vista da noitada e dos negócios, como das relações laterais. No balcão, uma longa e envernizada tora de madeira, artesanalmente trabalhada, sobre a qual as cervejas, os drinques e os petiscos estavam dispostos em proximidade aos respectivos fregueses que falavam italiano, inglês, francês, espanhol e romeno. As meninas rareavam, escassas e fugidias, as poucas que por lá cruzavam estavam meio depressivas ou muito eufóricas querendo ir embora. Muito raras, brandiam olhares perpétuos de um segundo, sabidos em átimos, de quem cheira a ponta do metal e direciona o rumo a ser tomado. O esquema da noite era uma falha só. Prejuízo estava estampado na cara de todos. De todos e de todas. Todos (dono do bar, garçons, cozinheiros e seus assistentes, mototaxistas, traficantes e policiais) e todas (putas, namoradas das putas, parentes vendedores ambulantes das putas e amigos e amigas em geral que tinham ido para aproveitar alguma boquinha e fazer um programa sem se comprometer com a condição), todos tinham um cara de tacho, de frustração, de noves fora que somente uma noitada de sereno, de chuva no nordeste seco, podia oferecer. Lá para as bandas dos cabarés as coisas deviam estar mais animadas, era o pensamento geral que flutuava sobre a cabeça das pessoas, afinal, salão é salão e a Jukebox é atemporal, não tem hora ruim. O motociclista ao lado do bar queria de qualquer maneira um boquete da menina. Ele também estava trabalhando. Ela, profissionalmente, hesitava sem nenhum pudor, apenas por valorização do seu modo de estar de pé e para evitar transtornos com as autoridades, os colegas, uma vez que estava trabalhando também. Um das poucas que fora trabalhar naquele horário soturno e lamentável de vazio e falta de circulação de dinheiro. Tinha ido hoje por precisão pura, talvez estivesse bodada, pois puta bodada toma um remedinho pra disfarçar e engabelar os otários. A luz do poste, expondo o evento vexatório, facilitou uma negociação mais favorável para ela, saiu na garupa do motoqueiro que desistiu de insistir que a puta o chupasse ali mesmo no meio da rua e no claro. O italiano, de Roma, tomando uma cerveja no balcão de bebidas, olhão aberto para a puta em questão, estava em desespero, parecia que tinha acabado de chegar na cidade. Não era aquilo que tinham prometido da Fortaleza proibida. Era mais festiva, não? parecia expressar sobranceiro. Bateu em desespero atrás de uma travesti, toc toc toc rápidos na calçada, que passou ligeira para as bandas do calçadão perto da igreja de Nossa Senhora do Mar, caminhava para negócios ,certamente, ou certamente fugindo dos mal negócios. O italiano ia ter que correr e ele foi atrás. Pagou a conta com um nota de 50 reais, o dono do bar verificou sob as barbas a autenticidade do papel antes de lhe passar o troco. Os italianos agora que estão sem primeiro ministro, às turras com a austeridade fiscal, parecem ter perdido algum valor de face no mercado local da cidade, mas não de todo, as meninas são apaixonadas por eles, pagam até as contas, se preciso for. Na esquina, bem próximo do bar, os rapazes do beco, olhares mais acesos do que as ventas, de boné-bermuda-laço-bobo, caras de bandido, ofereciam o caminho das pedras para os clientes. Tinha do branco, do preto e da pedra. O caminho do beco era proustiano em sua avidez por luz e sombra e flores.

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