segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A péssima condição dos imodestos

Acordei na mais profunda miséria. Nunca foi diferente. Não houve mudança repentina de condição. A condição sempre foi a mesma, a fuga. Estabelecido no mais profundo vazio de sentido, e pouco simpático às soluções escapistas, a fuga, naquilo que ela tem de radicalmente anti-escapista, foi o único bem de salvação pessoal sociologicamente disposto ao meu alcance. Estando à mão, a fuga é quase uma aberração, uma vez que a aberração num sentido pleno é o escapismo. Quem dera, como meu vizinho, dispor de coisas dadas. Todo um ordenamento da conduta. Um penteado da moda (adquirido quando ele era jovem), um carro do ano (um japonês, adquirido nas últimas eleições em que atuou como cabo eleitoral de um homem de bem, um político da terra) e um beijo de segunda-feira da esposa, cheirosa e asseada com os perfumes adocicados trazidos da última viagem que o casal fez para Nova York (passagens adquiridas por um amigo do Tribunal que teve a gentileza de lhes repassar um mimo que ganhou por lá). Mas nenhum desses detalhes que compõem as pequenas condições importava naquele momento em que meus vizinhos sofisticados estavam indo para esse paraíso das compras, a "nossa São Paulo", como dizia ela, com o riso histriônico dos seus saltos altos, com a máscara de felicidade maquilada entre os pés de galinha que se avizinhavam delicadamente das preguinhas da boca belamente pintada com o batom que a empregada que vende coisas da Natura lhe trouxera como presente de Natal (a um preço módico), e enquanto embarcavam no Aeroporto Internacional de Fortaleza, que não é ainda o Galeão, nem Guarulhos, sonhavam os sonhos que já haviam sonhado desde sempre, os sonhos que tinham seus próprios caminhos e seus próprios pés, que praticamente caminhavam a frente deles dois, abrindo o caminho que não saberiam abrir, sonhos resolutos, objetivos, firmes e absolutos como um sorriso de Outdoor. Enfim, se ao menos eu tivesse acesso à metafísica de sentido dos vizinhos: carreira de sucesso, carteira recheada de notas de cem e muitos enfeites emprestando-lhes uma máscara jovial, bem-sucedida, responsável e surpreendentemente estável, familiar, de confiança, mas eu acordei e não tinha nada disso. Sim, o meu vizinho, é preciso que se diga, ele grita com a empregada e berra com o porteiro, além de só fazer sexo aos domingos, ouvindo Roberto Carlos nas alturas com a estação de rádio mal-sintonizada e tosse muito quando está tomando banho, tosse e escarra, e, ademais, vota nos candidatos socialistas que formam o time dos altos executivos que governam o Ceará, mas não é essa a questão, não estou escrevendo para desqualificar ninguém, não quero ser além de vazio, um maldoso, todo mundo é humano, afinal, é preciso ter compaixão pelos pequenos errinhos dos outros. Quem é perfeito? O que eu invejo no meu vizinho é a estabilidade com que as formas coletivas de percepção o premiam com a imagem do bom filho, do bom cidadão, do bom marido e do (quase) bom condômino (pois, ele anda devendo algumas taxas extras, principalmente, a do controle individual do portão automático, e, como ainda não o adquiriu, ele despeja a estrondosa buzina de seu carro japonês três vezes ao dia nos ouvidos da rua inteira, em geral, é nesse momento que ele também grita com o porteiro, mas deixemos de fofocas e de acidez). A remuneração social de meus vizinhos sofisticados é líquida e certa, e possuem um bom crédito na praça. Eles frequentam a igreja aos domingos: e bem vestidos, na medida da imaginação que lhes outorga um lugar sério na vida da boa sociedade. O certo é que hoje acordei na mais profunda inanição, sentindo-me precário, esvaziado e excluído da possibilidade de consumir metafísicas e narcóticos anônimos que as substituam. Que fatal-idade é essa, a minha? Por que estou obrigado a produzir meu próprio sentido com o suor do meu rosto? Por que tenho que produzir o meu pão, meter a mão na massa e fazer o sentido caseiro, válido apenas para o dia, pois pão artesanal é a coisa mais falha que existe, estraga em dois tempos? Tão mais fácil seria se eu tivesse acesso ao corriqueiro sentido, industrialmente consumido e estampado com regularidade publicitária pelos meus vizinhos sofisticados! E não fosse preciso que eu, a marteladas, antes mesmo de tomar um digno café preto como desjejum, tivesse que vir aqui me confessar diante dessa máquina teatro do mundo para vocês que eu estou me sentido só e abandonado, sem sentido para começar o segundo dia da semana! Sinto-me nessa condição esmagada que é a nossa (não a dos meus vizinhos, mas a sua e a minha, uma coisa entre amigos que acontece apenas nas piores famílias). E que Nosso Senhor Jesus nos proteja da danação eterna dessa desamparada e irreparável condição (apesar de merecermos punição por não irmos à igreja dos meus vizinhos aos domingos). Mas não sejamos imodestos. Afinal, como alertava Paulo Mendes Campos, a quem dedico também minha devoção primeira, "a própria dor tem a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor". Que a semana seja de redenção (e se não for possível haver reconciliação nesta, desejo que, ao menos, possamos tomar uma cerveja gelada na quarta-feira para esperarmos a boa nova, após o carnaval).

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